sexta-feira, 2 de maio de 2014

Diário aberto #RelatosdaAtriz 01

      Para quem não me conhece, aqui fala a Luana, fundadora da Bololô Cia. Cênica, atriz e escritora de diários, dentre muitas outras coisas (algumas que ainda nem sei). O post de hoje é dedicado ao trabalho que estou desenvolvendo no momento, a construção de um solo a partir dos meus próprios diários e dos diários publicados de Anaïs Nin. Este trabalho integra a minha pesquisa de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN. 
      Atualmente a Bololô está com duas montagens em andamento, o meu solo e o processo Memórias de Quintal, encabeçados por Paulinha Medeiros e Alex Cordeiro, fruto também das pesquisas de metrado dos dois. 
      Na última quarta, dia 30 de abril, fiz a primeira abertura do processo de criação, apenas para mulheres. No convite que enviei para elas, chamei a abertura de "ensaio aberto", mas na verdade não foi um ensaio, foi um jogo, uma experiência, uma troca. Pensei em escrever um relato sobre essa noite, mas fui incapaz. Talvez eu tenha nascido mesmo para escrever diários. 


Aquecimento.


      Então transcrevo aqui o que moveu minha escrita no dia seguinte à abertura do processo. 


"01 de maio de 2014

      Escrevo no meio da tarde preguiçosa com uma dor de cabeça nada amigável. Não sei se foi a noite pouco dormida, ou o muito vinho e pouca água. A Bianca (minha gata maravilhosa e blasé), que passou o dia inteiro dormindo na minha cama, me olha com seus olhos azuis de mistério enquanto engulo uma aspirina e bato essas teclas do computador.
     Acabei de ler o que escreveram para mim ontem no diário. Noite passada fiz a primeira abertura do processo criativo que estou vivendo. Leio e me emociono desde o fundo em mim. Saber que toquei, que adentrei, saber que minha dança (torta) e que minhas palavras e as palavras de Anaïs Nin chegaram e falaram ao íntimo de alguém... é a minha maior satisfação. É claro que faço arte por que me é urgente, por que sinto a necessidade de me expressar no mundo, por que amo o gozo de criar, o gozo de Deus (como diria Manoel de Barros), por que tenho gritos que não posso calar, por que tenho suspiros que quero dividir. Mas não faz sentido fazer só pra mim. Não vejo sentido numa arte sem destinatário. Sempre gostei de pensar na arte também como um espaço de generosidade, de alteridade, um espaço de ENCONTRO. (Isso não quer dizer que ela tenha que ser sempre bonitinha e agradável, não é isto que estou dizendo! Existe encontros também a partir da raiva, do grotesco, etc, etc. Não pretendo aqui me alongar nessa discussão).
       Faço arte por que quero me encontrar - e porque quero encontrar humanidades, como diria Grotowski; por que quero, sim, mudar o mundo (um sonho infantil?) por meio do sublime da arte. A arte é o meio e o fim.
      Nesse mundinho mesquinho e egoísta em que nos debatemos perdidamente como peixes moribundos fora d´água e da luz, que lindo e gratificante é encontrar o outro, nos (re)descobrirmos gente, gente com dores e amores, gente de carne e osso e mil e uma sensações: (re)encontrar o humano que somos. E, quem sabe, podermos nos unir a partir desse humano...! Isso me fascina. Tenho graves tendências hippie-existencialistas. Entretanto, para encontrar, encontrar verdadeiramente, é preciso desconstruir os muros (adeus, Berlim dividida!), é preciso tirar as máscaras, abaixar as guardas, é preciso desnudar-se. Corpo aberto. Peito aberto. É muito difícil ser sincero hoje em dia. É muito difícil SER. Somos tantas coisas, e raramente somos nós mesmos. Não deixam. Insistem em nos enfiar goela abaixo uma série infindável de tabus, pudores, convenções e valores que muitas vezes simplesmente NÃO NOS CABEM. Mas cabe a nós vomitar tudo de volta ou engolir pacificamente como um rebanho bem ordenado. Não, Senhor, eu prefiro ser a ovelha negra, branca, rosa-choque e azul-celeste. Prefiro ser as minhas escolhas. “Eu me recuso a viver num mundo ordinário como uma mulher ordinária. A estabelecer relações ordinárias. Eu quero o êxtase. Eu sou uma neurótica – sentido em que vivo no meu mundo. Não me ajustarei ao mundo. Me ajusto a mim mesma.” (palavras da minha amada Anaïs).
        Quero a liberdade de poder ser, de poder admitir e praticar os meus desejos, os meus sonhos, a minha vida. A minha vida que pertence a mim e a mais ninguém. Essa é uma das maiores inquietações do meu momento de agora.  E minha arte só pode ser (co)movida pelas minhas inquietações do agora. “A maior generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”, disse Camus (com certeza eu me apaixonaria por ele se tivéssemos vivido na mesma época. Fato.). Acredito piamente nessas palavras.
       Afora minhas divagações que nunca têm fim, preciso explicitar a gratidão e satisfação imensas que sinto ao saber que minha arte tocou. Me sinto plena. Reafirmo minha escolha por trabalhar e viver de arte.
       Ontem, o primeiro “ensaio” aberto do processo de criação que estou vivendo sobre os meus diários e os diários de Anaïs Nin, não foi, na verdade, um ensaio. Foi um laboratório de criação aberto, ou melhor, um jogo. Um pequeno ritual para mulheres. E ah, como eu gosto de rituais! Enxergo o ritual justamente como um lugar de encontro e entrega.
       Preciso dizer que estava nervosa, sim. Abrir os diários é me abrir, e nem sempre sou bonitinha, perfeita, polida. Pelo contrário, tenho egoísmos, medos, carências, rasgos, fissuras, sexos. Mas entendo que isso não significa nada além do que significa: que sou humana. Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é. Eu só espero, na minha vida e na minha arte, ser o que eu sou. Provar dessa dor e dessa delícia, porque elas são MINHAS. Entendo o ato de abrir os diários não como um mergulho no lago de Narciso, mas como um meio de alcançar o humano em mim que quer encontrar o humano no outro. Sei que meus conflitos não são só meus. Sei que guardo as vozes de muitas mulheres destroçadas, porque eu mesma sofri destroços.
        Não tentarei descrever o que aconteceu. Nem me sinto capaz. Ainda não encontrei as palavras, se é que existem palavras. Foi íntimo e profundo. E reitero: nesse mundinho, estão em falta as coisas íntimas e profundas. Por isso, só tenho a agradecer a todas as mulheres que foram e que compartilharam a noite e o vinho comigo.




                           
     Agradecimentos especiais também aos homens que acompanharam/vem acompanhando o processo de criação: meu querido amigo multiartista Juão Nin, que agora está nasdistante terra de Sá Paulo, e meu amigo, cúmplice, provocador e preparador corporal Rodrigo Silbat. Obrigada aos dois por me provocarem, me tirarem da zona de conforto, por me darem coragem e apoio sempre."  

      

Um comentário:

  1. Uau, Luana, se tuas palavras já me tocaram, imagino se tivesse presenciado esse ritual belíssimo que tu citou. És muito boa falando com palavras, não duvido que fale melhor ainda com seu corpo! Não fui ao ensaio, mas já apoio demais essa tua abertura poética e humana, e gostaria de presenciar esse teu processo, pois o imagino muito rico. Admiro a criação dos teus próprios desafios, nem todos conseguem fazer isso, e ter a vontade de vencê-los é mais admirável ainda. Esse tipo de iniciativa inspira, motiva, incentiva e apaixona. É bom saber que da existência desse teu caminho para (re)descobrir, (re)encontrar e (re)fazer laços com pessoas! Desejo-te muito sucesso nas escolhas.
    E seu texto mostrou perspectivas muito sinceras e contagiantes, concordo com muita coisa que disseste, e adoro seu olhar sobre as coisas. Continue escrevendo, atuando, dançando, entortando, provocando, enfim, sendo! :)

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