terça-feira, 22 de abril de 2014

Breve história dos quintais do Retrato

      Como alguns já devem saber, há duas semanas atrás a Bololô esteve em Juazeiro do Norte (CE) apresentando o espetáculo Retrato do Artista Quando Coisa, inspirado na poesia de Manoel de Barros, no Centro Cultural do Banco do Nordeste (que nos recebeu muitíssimo bem!). 
         As três apresentações em Juazeiro foram um marco para o espetáculo, pois foi a primeira vez que nos apresentamos numa relação completamente frontal e tradicional num palco italiano. 
        Para deixar vocês a par, faremos aqui um breve relato sobre a história dos quintais do Retrato. O Retrato nasceu na Casa das Artes de Ponta Negra, um espaço alternativo (lindo) em Natal (RN), que fica na Vila de Ponta Negra. Na época, nós estávamos ensaiando lá, mas não sabíamos ainda onde iríamos estrear o espetáculo, pois as pautas dos outros espaços teatrais da cidade estavam ocupadas ou caras demais pra nós. Foi quando um dos nossos diretores, o querido Odilon Esteves, veio a Natal e, em uma tarde de café e sol na Casa das Artes, nos disse : "Vocês tem que estrear aqui! Este é o quintal de vocês." E era mesmo. Para vocês entenderem melhor, há de se saber que o quintal é fundamental na poesia de Manoel de Barros. Manoel se denominava poeta de quintal, e dizia que seu quintal era maior que o mundo, pois o tamanho e "a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. (...) a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produz em nós." E seu quintal era motivo de fascínio. Para nossa alegria, o nosso também nos fascinava. Pelas fotos, dá pra ver um pouco sua beleza: 

Quintal da Casa das Artes. O espetáculo começava aqui fora.
Foto: Diego Marcel.

Bugrinha escutando a voz das árvores tortas.
Foto: Diego Marcel.

Luana olhando o abandono pela janela.
Foto: Diego Marcel.

        Assim, o Retrato estreou completamente grudado e adaptado àquele lugar, àquele quintal da Casa das Artes. As cenas andavam pelo quintal. Explorávamos cada pedrinha, cada árvore torta, cada planta que furava o concreto e nascia tímida e sublime. Os espectadores tinham a possibilidade de explorar o quintal conosco, pegar no abandono e na natureza, contemplar sua beleza sem nenhum palmo de separação.
       Mas tínhamos o desejo de levar o espetáculo para outros quintais, de circular. Assim, pensamos em uma adaptação para teatros. Estreamos essa adaptação no Teatro Alberto Maranhão, em Natal (RN) e repetimos no Theatro José de Alencar, em Fortaleza (CE). O Theatro José de Alencar tem um pátio bem verde e começávamos o espetáculo por aí. Depois levávamos o público para dentro, mas não para as confortáveis cadeiras da platéia, e sim para cima do palco, junto conosco, de frente para a boca do palco, de frente para o proscênio, de frente para as cadeiras vazias da platéia. A intenção era revelar o abandono do teatro: seus ecos, seus morcegos, seus fantasmas. Foram apresentações lindas, mas que só funcionaram porque o palco do teatro era grande o suficiente para abrigar o espetáculo e os espectadores.
     

Arlindo no pátio no Teatro Alberto Maranhão.
Foto: Tiago Lima.

Paulinha fazendo comunhão com as águas no mesmo pátio.
Foto: Tiago Lima.

Público entrando no Teatro, indo sentar nas cadeiras brancas em cima do palco.
Foto: Tiago Lima.

Atores agradecendo ao final do espetáculo. Todo o avesso e o abandono do Teatro à mostra.
Foto: Tiago Lima.

         Então fomos apresentar em Juazeiro, e sabíamos que o palco de lá não tinha as dimensões necessárias para comportar o espetáculo e os espectadores. Nos vimos diante de um desafio. Ainda tínhamos muito apego em ter o público junto de nós, vendo de perto. Mas não havia outra solução: arriscamos fazer tudo, todo o espetáculo, em cima do palco, sem nenhuma cena externa (antes todo o começo do espetáculo era no exterior), tendo os espectadores sentados convencionalmente nas cadeiras da platéia, assistindo de longe. Temos de confessar que tivemos medo. Medo de o espetáculo não chegar, medo de não atingirmos nossos espectadores, de não comover como estávamos acostumados a comover.
         Felizmente, nosso medo foi em vão. O espetáculo funcionou. Fomos bem recebidos, e até ganhamos alguns trastes para transformar em poesia (para quem ainda não viu, o cenário do Retrato é composta por objetos e coisas trazidas a título de descarte pelos atores e por espectadores, coisas que, em cena, viram poesia). Agora temos a certeza de que não há limites para a poesia de Manoel. Ora, se a poesia manoelesca vence limites e montanhas, porque não iria vencer quartas paredes? 




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