Para quem não me conhece, aqui fala a Luana, fundadora da Bololô Cia. Cênica, atriz e escritora de diários, dentre muitas outras coisas (algumas que ainda nem sei). O post de hoje é dedicado ao trabalho que estou desenvolvendo no momento, a construção de um solo a partir dos meus próprios diários e dos diários publicados de Anaïs Nin. Este trabalho integra a minha pesquisa de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.
Atualmente a Bololô está com duas montagens em andamento, o meu solo e o processo Memórias de Quintal, encabeçados por Paulinha Medeiros e Alex Cordeiro, fruto também das pesquisas de metrado dos dois.
Na última quarta, dia 30 de abril, fiz a primeira abertura do processo de criação, apenas para mulheres. No convite que enviei para elas, chamei a abertura de "ensaio aberto", mas na verdade não foi um ensaio, foi um jogo, uma experiência, uma troca. Pensei em escrever um relato sobre essa noite, mas fui incapaz. Talvez eu tenha nascido mesmo para escrever diários.
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Aquecimento. |
Então transcrevo aqui o que moveu minha escrita no dia seguinte à abertura do processo.
"01 de maio de 2014
Escrevo no meio da tarde
preguiçosa com uma dor de cabeça nada amigável. Não sei se foi a noite pouco
dormida, ou o muito vinho e pouca água. A Bianca (minha gata maravilhosa e
blasé), que passou o dia inteiro dormindo na minha cama, me olha com seus olhos
azuis de mistério enquanto engulo uma aspirina e bato essas teclas do
computador.
Acabei de ler o que escreveram
para mim ontem no diário. Noite passada fiz a primeira abertura do processo
criativo que estou vivendo. Leio e me emociono desde o fundo em mim. Saber que
toquei, que adentrei, saber que minha dança (torta) e que minhas palavras e as palavras
de Anaïs Nin chegaram e falaram ao íntimo de alguém... é a minha maior
satisfação. É claro que faço arte por que me é urgente, por que sinto a
necessidade de me expressar no mundo, por que amo o gozo de criar, o gozo de
Deus (como diria Manoel de Barros), por que tenho gritos que não posso calar,
por que tenho suspiros que quero dividir. Mas não faz sentido fazer só pra mim.
Não vejo sentido numa arte sem destinatário. Sempre gostei de pensar na arte
também como um espaço de generosidade, de alteridade, um espaço de ENCONTRO. (Isso
não quer dizer que ela tenha que ser sempre bonitinha e agradável, não é isto
que estou dizendo! Existe encontros também a partir da raiva, do grotesco, etc,
etc. Não pretendo aqui me alongar nessa discussão).
Faço arte por que quero me
encontrar - e porque quero encontrar humanidades, como diria Grotowski; por que
quero, sim, mudar o mundo (um sonho infantil?) por meio do sublime da arte. A
arte é o meio e o fim.
Nesse mundinho mesquinho e
egoísta em que nos debatemos perdidamente como peixes moribundos fora d´água e
da luz, que lindo e gratificante é encontrar o outro, nos (re)descobrirmos
gente, gente com dores e amores, gente de carne e osso e mil e uma sensações: (re)encontrar
o humano que somos. E, quem sabe, podermos nos unir a partir desse humano...!
Isso me fascina. Tenho graves tendências hippie-existencialistas. Entretanto, para
encontrar, encontrar verdadeiramente, é preciso desconstruir os muros (adeus,
Berlim dividida!), é preciso tirar as máscaras, abaixar as guardas, é preciso
desnudar-se. Corpo aberto. Peito aberto. É muito difícil ser sincero hoje em
dia. É muito difícil SER. Somos tantas coisas, e raramente somos nós mesmos.
Não deixam. Insistem em nos enfiar goela abaixo uma série infindável de tabus,
pudores, convenções e valores que muitas vezes simplesmente NÃO NOS CABEM. Mas
cabe a nós vomitar tudo de volta ou engolir pacificamente como um rebanho bem
ordenado. Não, Senhor, eu prefiro ser a ovelha negra, branca, rosa-choque e
azul-celeste. Prefiro ser as minhas escolhas. “Eu me recuso a viver num mundo
ordinário como uma mulher ordinária. A estabelecer relações ordinárias. Eu
quero o êxtase. Eu sou uma neurótica – sentido em que vivo no meu mundo. Não me ajustarei ao mundo. Me
ajusto a mim mesma.” (palavras da minha amada Anaïs).
Quero a liberdade de poder ser,
de poder admitir e praticar os meus desejos, os meus sonhos, a minha vida. A
minha vida que pertence a mim e a mais ninguém. Essa é uma das maiores inquietações
do meu momento de agora. E minha arte só
pode ser (co)movida pelas minhas inquietações do agora. “A maior generosidade
para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”, disse Camus (com certeza
eu me apaixonaria por ele se tivéssemos vivido na mesma época. Fato.). Acredito
piamente nessas palavras.
Afora minhas divagações que nunca
têm fim, preciso explicitar a gratidão e satisfação imensas que sinto ao saber
que minha arte tocou. Me sinto plena. Reafirmo minha escolha por trabalhar e
viver de arte.
Ontem, o primeiro “ensaio” aberto
do processo de criação que estou vivendo sobre os meus diários e os diários de
Anaïs Nin, não foi, na verdade, um ensaio. Foi um laboratório de criação
aberto, ou melhor, um jogo. Um pequeno ritual para mulheres. E ah, como eu
gosto de rituais! Enxergo o ritual justamente como um lugar de encontro e
entrega.
Preciso dizer que estava nervosa,
sim. Abrir os diários é me abrir, e nem sempre sou bonitinha, perfeita, polida.
Pelo contrário, tenho egoísmos, medos, carências, rasgos, fissuras, sexos. Mas
entendo que isso não significa nada além do que significa: que sou humana. Cada
um sabe a dor e a delícia de ser o que se é. Eu só espero, na minha vida e na minha
arte, ser o que eu sou. Provar dessa dor e dessa delícia, porque elas são
MINHAS. Entendo o ato de abrir os diários não como um mergulho no lago de
Narciso, mas como um meio de alcançar o humano em mim que quer encontrar o
humano no outro. Sei que meus conflitos não são só meus. Sei que guardo as
vozes de muitas mulheres destroçadas, porque eu mesma sofri destroços.
Não tentarei descrever o que
aconteceu. Nem me sinto capaz. Ainda não encontrei as palavras, se é que
existem palavras. Foi íntimo e profundo. E reitero: nesse mundinho, estão em
falta as coisas íntimas e profundas. Por isso, só tenho a agradecer a todas as
mulheres que foram e que compartilharam a noite e o vinho comigo.
Agradecimentos especiais também aos
homens que acompanharam/vem acompanhando o processo de criação: meu querido amigo
multiartista Juão Nin, que agora está nasdistante terra de Sá Paulo, e meu
amigo, cúmplice, provocador e preparador corporal Rodrigo Silbat. Obrigada aos
dois por me provocarem, me tirarem da zona de conforto, por me darem coragem e
apoio sempre."